Como tratamento multidisciplinar reduziu crises e devolveu previsibilidade a mulher após 30 anos de enxaqueca
26/11/2025
(Foto: Reprodução) G1 em 1 Minuto: Tire suas dúvidas sobre enxaqueca
Durante três décadas, a jornalista Catarina Alencastro, 46 anos, conviveu com enxaquecas recorrentes que atravessaram todas as fases de sua vida: começaram na adolescência, a acompanharam na faculdade, se intensificaram durante a rotina exaustiva em Brasília e seguiram presentes após a mudança para São Paulo.
Em períodos de maior estresse, as crises podiam durar dois ou três dias e se repetir várias vezes no mês, afetando trabalho, sono e vida familiar.
Ela buscou explicações, fez ressonância, eletroencefalograma, consultou neurologistas e experimentou diferentes analgésicos. Exames sempre normais; orientações de que era “apenas dor de cabeça”. “No mínimo uma vez por mês eu tinha uma crise. Quando a vida apertava, vinha três ou quatro vezes”, relata.
Como ocorre com cerca de 31 milhões de brasileiros, a doença foi ganhando espaço lentamente. Alguns anos melhores, outros piores –mas nunca realmente controlada. Catarina entrou em um ciclo comum: uso frequente de anti-inflamatórios e triptanos, períodos breves de alívio e retorno da dor cada vez mais resistente.
A virada começou quando sua filha, aos 13 anos, passou a apresentar sintomas semelhantes. A adolescente iniciou acompanhamento com uma neuropediatra especializada em cefaleias –e melhorou.
Ao perceber que existia de fato uma abordagem estruturada, moderna e eficaz para enxaqueca, Catarina buscou atendimento na rede privada. Foi encaminhada a uma neurologista especialista em cefaleias. A consulta durou mais de uma hora e traçou, pela primeira vez, um plano completo.
A dor sentida durante as crises de enxaqueca e de dor de cabeça tensional são em locais diferentes
Arte G1
Afinal, o que é enxaqueca?
A enxaqueca é uma doença neurológica primária, não um sintoma. Ela não surge de alterações estruturais no cérebro e, por isso, os exames costumam ser normais. O diagnóstico é clínico.
Segundo Fabiola Dach, professora de neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRP-USP) e chefe dos ambulatórios de cefaleia e dor neuropática da instituição, a crise começa quando moléculas inflamatórias liberadas nas meninges tornam as artérias dessas membranas mais sensíveis.
Isso ativa as fibras do nervo trigêmeo, que é o grande “cabo” de transmissão da dor na cabeça.
O processo desencadeia a dor pulsátil, geralmente unilateral, que piora com esforço físico e vem acompanhada de intolerância à luz e ao barulho, náuseas, vômitos e, em alguns casos, aura visual.
Mas a enxaqueca é mais do que dor. Como explica a professora do HC-FMRP-USP, áreas como o hipotálamo e estruturas do tronco cerebral participam do processo –e isso explica por que tantos pacientes têm alteração de sono, apetite, regulação emocional e sensibilidade ao ambiente.
A neurologista Sara Casagrande, especialista pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro da International Headache Society, reforça que a doença envolve desregulação de circuitos cerebrais inteiros, muito além da dor.
Ela cita evidências de que pacientes com enxaqueca crônica apresentam alterações de humor, déficit de atenção, disfunções do sistema autonômico, oscilação de temperatura corporal, fome irregular e até comportamentos como ranger os dentes –todos mediados pelo hipotálamo.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a enxaqueca como uma das doenças neurológicas mais incapacitantes do planeta, em impacto individual e coletivo. Esse peso se explica justamente pela soma da dor com os sintomas cognitivos, sensoriais e emocionais que acompanham as crises.
“É um sofrimento silencioso e incapacitante”, explica a médica.
A enxaqueca acomete 15% da população brasileira
Shutterstock
Por que algumas enxaquecas cronificam?
A enxaqueca é considerada crônica quando o paciente apresenta 15 dias ou mais de dor por mês, sendo ao menos oito dias com características típicas da doença.
Segundo Sara Casagrande, pacientes demoram em média 17 anos para chegar a um especialista que saiba tratar a doença –tempo em que o abuso de analgésicos, sono irregular, cafeína excessiva, estresse crônico e predisposição genética vão moldando um cérebro cada vez mais sensível ao gatilho.
“Quando o paciente chega sob condição crônica, tudo vira gatilho”, descreve a neurologista.
Nessas situações, até pequenas variações de rotina como luz, barulho, cheiro e mudança de horário podem precipitar crise.
Como reforça a professora do HC-USP, o diagnóstico de enxaqueca se baseia no padrão da dor, nos sintomas associados e na história clínica. Os exames são úteis apenas quando há sinais de alerta (“red flags”), como alteração neurológica aguda, febre persistente ou crises convulsivas.
Por isso, muitos pacientes passam anos fazendo ressonâncias normais e acreditando que “não têm nada”.
O tratamento multidisciplinar de Catarina
Em consulta na rede privada, Sara Casagrande identificou que Catarina tinha:
enxaqueca crônica há muitos anos;
uso excessivo de analgésicos;
consumo diário e elevado de cafeína;
gatilhos hormonais e de estresse;
múltiplos sinais de desregulação autonômica;
histórico familiar importante.
A partir daí, propôs um plano terapêutico amplo, com foco na recuperação do sistema de dor.
Detox de analgésicos e de cafeína. Catarina tomava cerca de 1 litro de café por dia há mais de 20 anos. Somado ao uso contínuo de anti-inflamatórios e triptanos, isso alimentava a “cefaleia por abuso de medicação”. A retirada foi gradual, mas intensa.
Bloqueios anestésicos. A neurologista identificou que alguns pontos do nervo trigêmeo (estrutura que leva os sinais de dor da cabeça para o cérebro) estavam extremamente sensíveis, como se estivessem “ligados demais”. Isso acontece em quadros de enxaqueca crônica, quando o sistema de dor fica em alerta permanente. Para quebrar esse ciclo, ela aplicou bloqueios anestésicos, um procedimento simples feito no consultório. Pequenas quantidades de anestésico são injetadas em regiões específicas da cabeça, ao redor desses ramos do trigêmeo, para desligar temporariamente os sinais de dor que chegam ao cérebro.
Toxina botulínica (botox). A toxina botulínica –o botox usado para tratar enxaqueca crônica– é um dos tratamentos mais consolidados para enxaqueca crônica, com nível de evidência científica 1A. Funciona reduzindo a liberação das substâncias que transmitem o sinal de dor. Com menos estímulos chegando ao cérebro, o sistema fica menos sensível e as crises tendem a diminuir. O procedimento é feito com aplicações superficiais em pontos específicos da cabeça e do pescoço e segue protocolos definidos em estudos clínicos.
Anticorpo monoclonal anti-CGRP. Única classe de medicamento desenvolvida especificamente para enxaqueca. Aplica-se por via subcutânea mensal. Age reduzindo a ação do CGRP, molécula que aumenta a sensibilidade dos vasos das meninges e facilita o início da crise.
Nutrição especializada e suplementação. A paciente foi encaminhada a uma nutricionista especializada em dor e cefaleia, com protocolo de suplementação para reduzir inflamação neural.
Higiene do sono e reorganização de rotina. Ajustes de horários, luminosidade, telas e hábitos estimulantes.
A enxaqueca é tão intensa que pode comprometer o dia a dia
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Os primeiros efeitos
Nos primeiros 45 dias, Catarina ainda teve episódios de dor, mas menos intensos, menos frequentes e, pela primeira vez, tratáveis antes de a crise se instalar.
Ela relata que sentiu, sobretudo, uma redução da pressão constante na cabeça, percebendo que vivia em um estado de alerta permanente sem saber.
Embora o tratamento completo preveja pelo menos um ano de acompanhamento, os primeiros passos já mudaram a relação dela com a doença: a dor deixou de ser o eixo da rotina.
E o acesso?
A realidade brasileira é desigual. Segundo Sara Casagrande:
O SUS oferece analgésicos e quatro preventivos orais, mas não terapias específicas como anticorpos monoclonais.
A rede suplementar costuma ter acesso ao botox em alguns centros, mas os anticorpos monoclonais não estão no Rol da ANS para enxaqueca.
O HC tem ambulatório especializado e aplica toxina botulínica em casos selecionados.
Para Casagrande, a ausência de biomarcadores objetivos (exames que identifiquem a doença) é hoje uma das maiores barreiras para que tratamentos avançados entrem nas políticas de cobertura. Sem esse tipo de critério, ela diz, a incorporação tende a ser lenta e restrita.
Apesar dessas limitações, os casos que chegam a um manejo estruturado mostram que é possível reduzir a frequência das crises, retomar a rotina e quebrar ciclos de dor –algo que, após três décadas de enxaqueca, começa a se tornar realidade para Catarina.
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